"Vou [morrer] de alma lavada. Estou feliz!"

"A herança que vou deixar são minhas idéias, que ninguém rouba, ninguém toma, ninguém compra."

Lucilia.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Tal pai, tal filha

Benito Caparelli
Tenho pela senhora Lucilia Soares Rosa e seu estimado culto e admirado pai, Calisto Rosa, a maior admiração e apreço. Com este último, tive o prazer e a agradável satisfação de reunir-me, juntamente com alguns companheiros, nos primórdios de minha atividade política e, inversamente, no ocaso da militância dele, vez que, já quase nonagenário, porém, conservando lucidez e memória impressionantes, nos aconselhava e relatava suas gestões políticas em Uberaba, e cidades circunvizinhas, sua ativa participação na fundação do sindicato dos alfaiates, considerado o primeiro órgão político-social de representação classista da cidade, lá pelos idos de 1920.

Dissertava sobre os fatos da ocorridos no país e em nossa cidade, com extraordinária clareza e riqueza de detalhes, mormente se relacionados com a fundação do Partido Comunista do Brasil e a vinculação deste com a Internacional Comunista, discorrendo sobre a personalidade de cada um dos líderes deste movimento político-ideológico, citando corretamente os nomes e as atividades de cada uma dessas lideranças.


Sobre a doutrina marxista, o Velho Calisto era professor emérito, já que havia acumulado cultura autodidata superior a de muitos dos intelectuais diplomados que conheci. Falava e discutia a filosofia de Marx e Engels como ninguém e, eu, ficava, simplesmente, encantado e perguntando-me como um simples operário, como ele, era capaz de ter amealhado tanta cultura política. De tão embevecido que permanecia como que, parafraseando Quintiliano Jardim, diria, agora: "Uberaba de antanho e Uberaba de agora, não sei qual das duas quero mais. Se a de meus dias joviais ou se dos meus dias outonais".


Seu Calisto, como era chamado, historiava a vida política de Josef Stalin, que foi secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, de 1922 até 1953, logo após a morte do líder da Revolução Russa de 1917, Vladimir Lênin; do intelectual revolucionário Leon Trotsky, morto brutalmente a machadadas no México, em 1940, onde se encontrava asilado, de quem era grande admirador; de Alexander Kerensky, que foi primeiro-ministro da jovem república russa e ministro da Guerra da União Soviética, no período revolucionário, e de tantos outros iniciadores da doutrina socialista.


Relatava, minuciosamente, as estratégias da Segunda Guerra Mundial, principalmente em relação à invasão alemã na União Soviética, discorrendo, particularmente, sobre o cerco de Stalingrado e o heroísmo desse povo que, malgrado ter perdido milhões de cidadãos, despreparados para a guerra, ainda conseguiu derrotar o exército nazista, numa das mais belas epopeias da humanidade. Sobre a biografia de Prestes, o seu exílio e o casamento com Olga Benario Prestes, era profundo conhecedor e fiel transmissor de fatos.


Não sei se ele chegou a participar da Revolução de 1930, mas foi assíduo sabedor dos intrincados fatos políticos da ocasião, mormente sobre a ditadura Vargas, a quem enaltecia os avanços legais na conquista dos parcos direitos tuitivos da classe operária e, ambiguamente, tecia ardorosas críticas à falta de liberdade política e o distanciamento da ditadura dos mais comezinhos princípios democráticos.


Era, simplesmente, encantador ouvi-lo. Sua filha Lucilia, a quem dedicamos nossa mais fiel estima e consideração, não fugiu à regra e nem distanciou-se dos ensinamentos do pai. Melhor será dizer, tal pai, tal filha. Saiu à sua imagem. Conheci-a como membro ativo do incipiente do movimento comunista de Uberaba, que nem mesmo chegou a se transformar em partido político, por razões óbvias de sua injusta ilegalidade e, "et por cause", ser a nossa cidade centro político de visão estreitamente direitista, eminentemente ruralista e tradicionalista, arraigada às suas raízes e ligações profundas com o coronelismo, então vigente.


Não há dúvida de que havia, então, autêntico conflito ideológico entre a nova doutrina socialista, por nós anunciada, batendo de frente com as arcaicas normas legais, relacionadas com o trabalho do homem no campo e no convívio com seus senhores patronais, os quais sempre mantinham representação política, nas mais diversas órbitas administrativas, quer elegendo prefeitos, vereadores e deputados, que lhes garantissem destaque social, isentos de qualquer tipo de contrariedade econômica de origem legislativa, que pudesse impor-lhes tributos destinados à assistência social e previdenciária de seus serviçais.


Basta dizer que, durante o governo de Getúlio Vargas, de longa duração, as poucas legislações de natureza social destinadas à proteção ao homem do campo, advieram de decretos legislativos, sem qualquer origem no colegiado congressista do país.


Não quero dizer, com isto, que todos os agricultores ou pecuaristas de Uberaba, que mantinham inúmeros empregados em suas fazendas eram retrógrados ou, como dizíamos na ocasião, reacionários. Haviam os bons, como ainda há. Aliás, foi na observação do comportamento social de alguns deles é que me tornei admirador da doutrina socialista.


Não raro, caminhando pela praça Santa Terezinha, nos finais de semana, era comum verificar que na porta da residência do inolvidável coronel Ranulfo Borges sempre havia uma leva de velhos e velhas, famintos e indigentes, todos egressos de serviços rurais da região, pedindo alimentos para si e sua prole, por não mais terem capacidade laborativa, dos quais tive a oportunidade de vir a saber: não eram ex-empregados deste bondoso senhor, mas, nem por isso, deixavam de receber tal messe.


O mesmo, semanalmente, ocorria na porta do senhor Felício Frange, no bairro Estados Unidos, como, também, na residência do extraordinário senhor Fued Hueb, no bairro São Benedito. Não me perdoaria se não fizesse registro das incomensuráveis filas de indigentes e de toda sorte de outros pedintes, nas portas do templo espiritual comandado pelo inesquecível Chico Xavier, em busca de iguais socorros alimentares. Quem, da minha idade, não assistiu a tão triste espetáculo do ponto de vista político-social?


Daí, para mim, adveio a indagação: por que estas pessoas, que por tantos anos trabalharam duro e pesadamente nos serviços rurais não mereciam uma aposentadoria digna e, ao menos, capaz de dar-lhes sustentáculo alimentar, e abrigo por moradia condigna? Qual o porquê da orfandade legal e política desses cidadãos, mal saídos do período em que reinava a escravidão?


Desta indignação, à ação política, para mim e para tantos outros companheiros, inclusive a altruísta Lucilia, foi um simples passo. Juntamente com outras forças políticas, religiosas e sindicais urbanas, considerando ser extremamente necessário a politização desses desamparados camponeses, passamos a fundar sindicatos rurais nas mais diversas localidades e demais distritos suburbanos, sempre aos domingos ou em ocasiões de festas tradicionais, procurando dar a esses relegados trabalhadores da nação a indispensável orientação política, para formação de respectivas unidades sindicais, bem assim, esclarecendo-lhes da importância de seus votos eleitorais, na busca de seus verdadeiros representantes políticos, objetivando a conquista dos direitos que lhes eram inerentes, mas, que, infelizmente, sempre lhes foram negados.


E, lá, sempre, estava presente a companheira Lucilia, encarregada da discussão política com as mulheres dos trabalhadores, cujo missão era quase impossível ser praticada por homens. Deixava, ela, seus afazeres familiares domésticos, em detrimento da causa política, por considerar esta de maior importância naquela ocasião. Expressando com imensa facilidade e falando o linguajar fácil das pessoas do campo, lá estava a companheira Lucilia cumprindo honrosamente o seu munus esclarecedor, além de distribuir panfletos e jornais de edição operária, estampados com registros de conquistas desses trabalhadores em outros rincões.


Posso afirmar, com absoluta segurança, a inexistência de outras mulheres naquela ocasião, atuando na "frente de combate" de tais atividades, motivo pelo que considero a companheira Lucilia a pioneira e a percussora desta efeméride política, pelo que deve ser relembrada e enaltecida para a posteridade e página destacada de sua biografia, a ser lançada, brevemente, pela historiadora Luciana Maluf e pelo jornalista Luiz Alberto Molinar, que, em boa hora, assim foi determinado pela Câmara Municipal de Uberaba, da qual tive a honra de participar, ainda que por breve tempo.



Benito Caparelli ("nome de guerra: Natal") {Uberlândia, 1935- }, agnóstico e advogado trabalhista. Vereador do PCB (Partido Comunista Brasileiro) eleito, em 1962, pelo PL (Partido Libertador), em Uberaba, e cassado após o Golpe Civil-Militar de 1964. Se apresentou ao 4º Batalhão da Polícia Militar e foi detido. Transferido para a Penitenciária Magalhães Pinto, em Ribeirão das Neves, próximo a Belo Horizonte. Ficou preso durante 105 dias. Advogou para o sindicato dos comerciários de Uberaba e fundou as entidades de trabalhadores rurais de Conceição das Alagoas, Água Comprida, Planura, Frutal, Ituiutaba, Veríssimo e Uberaba. Foi juiz do Trabalho em Mato Grosso. Aposentado, mora em Brasília (DF).