"Vou [morrer] de alma lavada. Estou feliz!"

"A herança que vou deixar são minhas idéias, que ninguém rouba, ninguém toma, ninguém compra."

Lucilia.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Ela é uma 'perpétua caixinha de surpresas'

 Revista Destaque In, Sacramento, junho/1998
Dimas da Cruz Oliveira

Comemorações têm sempre um caráter solene. São realizadas num vasto espaço aberto, ao som festivo das bandas, ou então acontecem num vistoso salão iluminado por lustres imponentes e mobiliado por cadeiras igualmente respeitáveis; sucedem-se os discursos, ecoam as ladainhas da eloquência durante horas intermináveis enquanto a plateia entediada lança olhares de cobiça para as iguarias dispostas nos melhores casos. Exagero? Talvez não, afinal de contas a perspectiva muda quando uma comemoração é vista "do lado de dentro", além da sua aparência brilhante.

Assim, com acento quixotesco, comemoramos o Dia Internacional da Mulher mais ou menos como se comemora o Dia do Índio acendendo fogueiras em Brasília ou o Dia da Abolição enfatizando a situação pouco lisonjeira do negro no Brasil. Falamos sobre o papel fundamental da mulher na construção da sociedade, sobre a sua função educadora e redentora, citamos famosas personalidades femininas, tecemos loas às nossas mães, irmãs, esposas, filhas... e oferecemos lindos buquês de flores a D. Lucilia. Por que D. Lucilia? Por que falamos dessa mulher singular e "comemoração viva" da condição feminina? Porque D. Lucilia surpreende a todos; ela é uma 'caixinha de surpresas' com sua inesgotável loquacidade e humor.

D. Lucilia foi nossa convidada especial e foi, ela mesma, um ponto de atração. Atração porque sua verve, sua inteligência e espírito crítico, jamais falham. Ao receber as flores, ela foi contundente: ao invés de limitar-se a um prosaico agradecimento ela declamou contra a opressão da mulher na nossa sociedade; protestou alto e bom som, contra a posição de pretensa superioridade masculina; afirmou que a comemoração deveria estender-se a todos os dias do ano e traduzir-se em gestos de colaboração, de carinho, de amor, que amenizam a dureza da vida cotidiana. Porque o dia a dia da mulher não é feito de flores e elogios, mas de terríveis provações. Entre os desempregados, os doentes, os violentados, quantas são as mulheres e quantos os homens? Numa cultura machista por tradição não é tarefa fácil libertar a mulher e elevá-la à mesma condição do homem. A situação, muitas vezes, num processo semelhante ao do racismo, é mascarada, disfarçada a fim de se evitar qualquer mudança; quem sabe até mesmo numa comemoração do Dia Internacional da Mulher, sob chancela masculina, não reflete essa situação?

Ao conhecermos D. Lucilia, sentimos que a palavra "comemoração" perde a rigidez e solenidade, e passa a correr nas nossas próprias veias.

Dimas da Cruz Oliveira é professor e mora em Sacramento (MG).

domingo, 29 de novembro de 2009

Mais uma vez, história!

Blog Colcha de Retalhos, 20 set/2009
Angélica Marchiori

"(...) encontrei um blog de uma senhorinha linda: Lucília Rosa Vermelha. Guerreira, revolucionária, que como muitos nesse país lutou por uma sociedade mais justa em um dos períodos mais densos de nossa história. Leio, choro, emociono-me. Gostaria de conhecer Lucília, Anita e mais Lucílias, Anitas, Luises, Zuzus e anônimos que escreveram a história do país com luta, com sangue... Quem sabe em algum momento, não é?  (...)"

Angélica Marchiori é educadora, historiadora e reside em Piracicaba (SP). É autora do blog Colcha de Retalhos: http://colchatalhos.blogspot.com/

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Idade e paixão revolucionária

Revista Destaque In, Sacramento, mar/abr 2008
Lauro Guimarães

A trajetória de Lucilia Rosa é algo bastante raro em termos de coerência e forte ligação entre convicção e história de vida.

Teve contato com as idéias socialistas já na infância dos longínquos anos 20, em uma Uberaba controlada pela aristocracia rural, cidade então muito pequena e que respirava sob o clima pesado de religiosidade católica sufocante, preconceituoso e retrógrado.

Cresceu absorvendo o ateísmo do pai Calisto Rosa, precursor ativista social do princípio do século XX, militante inicialmente adepto do anarquismo, que ousava ser um assumido contestador das instituições reinantes, em pleno auge do coronelismo violento e castrador de qualquer insubordinação a seu completo domínio.

Tendo conseguido estudar muito pouco, Lucilia pôde, entretanto, conhecer os livros marxistas que maravilharam o alfaiate Calisto Rosa e o fizeram converter seu ideal transformador, do Anarquismo, para o Marxismo que se procurava implantar na Rússia, então recém saída da vitoriosa revolução de outubro, cujas notícias da tomada do poder por soldados e operários em armas, corriam mundo.

Mesmo integrando um número pequeno e insuficiente de idealistas, movidos pela generosidade e pela crença inabalável no socialismo, Lucilia logo se perfilou, em Uberaba e acolá, junto a companheiros que se dispunha, como ela, a remover gigantescos obstáculos em busca de uma nova sociedade, igualitária e fraterna.

Problemas e questionamentos existenciais pelos quais todos nós passamos, não foram capazes de abalar sua certeza inquebrantável no advento de novos tempos, para os quais cabia lutar.

Militante comunista desde muito jovem, combativa vereadora na pequenina cidade de Campo Florido em 1947, ao se bater pelos direitos dos despossuídos, confrontou ali também com a prepotência do poder dominante.

Empregada doméstica em casas de gente rica, a vida toda ganhando salários baixos, Lucilia teve que fazer um intenso sacrifício para conseguir educar e formar seus dois filhos.

Morou por vários anos na capital paulista, onde conviveu com o então secretário-geral do Partido Comunista do Brasil, (PCB naquela época) Luiz Carlos Prestes, conhecido no Brasil e no exterior, por décadas, como o legendário Cavaleiro da Esperança.

Tornou-se íntima das irmãs do dirigente comunista e, principalmente, de Anita Leocádia, filha de Prestes com Olga Benário, a alemã assassinada em 1942 pelas forças nazistas no campo de concentração de Bernburg.

Conseguiu detectar, com sabedoria, a nefasta influência das relações capitalistas de produção como grande causadora de conflitos pessoais, denunciando e alertando contra anseios e valores burgueses difundidos e martelados incessantemente nas cabeças dos seres humanos, seja através dos meios de comunicação ou de outros instrumentos de transmissão ideológica.

Nos perigosos anos 70, viveu na clandestinidade em São Paulo, escondendo sob disfarce a famosa filha de Prestes, intensamente procurada pela Polícia.

Por nada menos que seis décadas, enquanto o Partido estava a serviço da causa e suas ações se fundiam com os ideais revolucionários, a dedicação de Lucilia ao Partido foi sua primordial tarefa e preocupação, as quais todas as demais, sem exceção, estiveram subordinadas.

Ao longo de sua vida quase centenária não cultivou nenhum projeto pessoal de riqueza ou de conforto material que pudesse desviá-la da priorização da causa dos oprimidos.

Quando adveio a desilusão e discordância com os rumos e a linha do Partido, foi com tristeza que ela efetuou o inevitável afastamento daquele símbolo para o qual tanto lutou. No entanto deu prosseguimento firme à dedicação direta às mesmas causas de antes. Ao contrário de tantos que usaram os erros do Partido para renegar a luta e alguns até para passar a servir à direita, aqui também Lucilia foi extremamente digna.

Foi assim que, em 1980, manteve-se alinhada às novas posições políticas de Prestes, quando do rompimento entre o “Velho“, que havia retornado ao Brasil um ano antes, vindo do exílio, e o PCB moderado que emergia da clandestinidade.

Nos mesmos anos 80 participou ativamente Dona Lucilia da organização e das atividades do Centro de Integração da Mulher (CIM), entidade feminista atuante em Uberaba naqueles anos.

Com a auto-decretação do fim do seu antigo PCB, em 1992, quando a convidaram a aderir à nova agremiação partidária que surgia o Partido Popular Socialista (PPS) ela dizia de forma bem objetiva: "Esse 'Pepsi' não vai a lugar nenhum".

Continuou acreditando numa sociedade fundada na igualdade, e qual não foi sua alegria ao saber que na vizinha cidade de Campo Florido, onde sofreu violência policial e humilhações em virtude de seu espírito combativo, um enorme latifúndio havia sido ocupado em 1993 por dezenas de famílias sem-terra. Lucilia apoiou como pôde os ocupantes da área, auxiliando-os de todo modo e tornando-se também amiga de muitos deles, hoje assentados e gerando produção em uma terra antes abandonada.

Sempre se pautou por um notável despojamento, humildade pessoal e material, prestando integral solidariedade aos que lutam pelas causas sociais mais nobres.

Conquistou a amizade familiar e a gratidão eterna da família de Prestes, das irmãs do “Velho”, Eloísa, Clotilde, Lúcia e a mais nova, Lygia, por ter sido tão corajosa e devotada na tarefa partidária de proteger Anita em São Paulo, nos anos mais negros e arriscados da ditadura militar. Este cultivado carinho e admirações mútuas fizeram Dona Lucilia e a família do "Velho" trocarem cartas constantes.

Os revezes de toda ordem que a vida costuma trazer, sejam eles de caráter pessoal ou coletivo, como o foi o desabamento da União Soviética para Dona Lucilia, não a levaram a abdicar e, muito menos, renegar ou maldizer suas convicções e posições políticas.

Isso porque sempre foram posições tomadas com profundidade, radicais, porém não da tonalidade e conteúdo de um esquerdismo infantil.

Várias foram também as pessoas que a olharam, no decorrer deste bem extenso caminho, com o desprezo cultivado aos esconjurados “radicais“, ignorando que os atos e posicionamentos políticos de Lucilia se guiavam pela saudável radicalidade na acepção genuína do termo, daqueles que vão à raiz das questões.

As avaliações de todos que a conheceram ou conhecem, sempre estiveram marcadas por dois ângulos opostos de visão: baixinha destemida, brava mulher, altamente idealista, na ótica de seus companheiros e admiradores, ou; inversamente, apenas uma mulher geniosa, no entanto perigosa comunista, da qual se devia guardar distância, para os que abominam suas ideias.

Tão rica em tempo de existência e de luta, Lucilia, materialmente pobre, encarna de forma desafiadora, na velhice, a perene juventude daqueles lutadores sociais exemplares, que ininterruptamente travaram o bom combate, os imprescindíveis, nos dizeres famosos de Brecht.

Numa época em que divergir e contestar a ordem estabelecida era extremamente mais penoso do que hoje, Lucilia se atreveu a conduzir sua vida para longe do marasmo e da modorra própria das existências banais, daqueles que ficam o tempo todo, conforme a letra da música de Raul Seixas, "sentado no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar!".

Dotada de sagrada inquietude transformadora, não se permitiu ser tragada pelo egoísmo pessoal e familiar que emburrece, castra e aliena as pessoas, tornando-as reprodutoras inconscientes e apatetadas da dinâmica social e econômica que favorece o processo de acúmulo do capital para poucos e a submissão da maioria.

Rigorosa, consigo mesmo e com os outros, muitas vezes dogmática na forma e no método, poucos seres humanos, entretanto, ao longo de um percurso tão longo de vida, têm sido tão coerentes quanto ela.

Se as senhoras em geral são pessoas respeitáveis, e realmente o são, mais respeitosa ainda é Dona Lucilia, pelo grande desprendimento com que tem vivido, pela história de mulher aguerrida, com as fibras enrijecidas pela luta social.

Para desmerecer o engajamento mais presente na fase jovem da vida e tentar caracterizar o esforço transformador como atos inconseqüentes e passageiros da mocidade, o conservadorismo cunhou a frase: "incendiário aos vinte, bombeiro aos quarenta".

Dona Lucilia, próxima agora aos cem anos de vida, mesmo em estado de debilidade física, é a negação veemente do referido adágio conservador, combinando de forma sadiamente atrevida, forte convicção revolucionária com idade avançada, tal qual Oscar Niemeyer, de quem, além de contemporânea, é companheira de convicções e de admiração à figura histórica de Prestes.

Lucilia, sem ser incendiária, no sentido pejorativo da palavra, mantém sim, em sua avançada idade, um ardoroso desejo de pôr fogo em muita coisa. Se pudesse, certamente colocaria sob as mais altas labaredas todo o sistema capitalista, o latifúndio, as iniqüidades de renda e de riqueza e os subprodutos maléficos deles derivados, motivada pela saudável indignação contra os abismos sociais que sempre vivenciou em todos os lugares onde esteve.

Negada a ela pelas difíceis condições econômicas, a chance de poder ter estudado mais, Lucilia ainda assim compreendeu, via militância e as duras lições concretas da vida, os conceitos de luta de classes, da mais-valia, da relação opressor x oprimido, da inconciliável e antagônica divisão entre os interesses do latifúndio e a Reforma Agrária, do conflito escandaloso entre a ostentação e a opulência, por um lado, e a miséria e a fome, de outro.

Aos profícuos 97 anos, encontra-se ligada há pelo menos vinte anos aos movimentos de luta pela terra, apoiando-os de todas as formas que pôde, seja abrigando lutadores sociais em sua própria casa, quando de seus deslocamentos, seja orientando, com sua vasta experiência de luta, os que a procuram para trocar ideias.

Permanece ela, com altivez de espírito, portadora da velha e saudosa paixão revolucionária que habitou a mente e o coração de lutadores valorosos da humanidade.


Lauro Guimarães é professor, fundador do PT em Uberaba e secretário de saúde em Ubá (MG).

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Jovem Lucilia (I)

Jornal da Manhã, Uberaba, 17/dez/2004
Livro Perfis especiais - feitos e méritos, 2009
João Eurípedes Sabino


No último dia 12/12/04, fiz uma visita que posso denominar inesquecível. Conheci Lucilia Soares Rosa, aliás, um desejo e uma dívida que tenho nutrido de longa data. Trata-se de um ser que, por sua lucidez e descortino mentais, desponta na frente de milhares da sua geração. São noventa e dois anos e quatro meses bem iniciados em 09/08/1912.

Contive-me várias vezes diante do turbilhão de informações claríssimas e detalhadas daquela que conviveu com Luiz Carlos Prestes, o grande Capitão. Orgulha-se em citar frases textuais de Karl Marx, Lênin, Prestes e outros destacados comunistas. Dizer-se uma revolucionária e de berço ateu é status que lhe toca o coração. Com o dedo indicador direito à fronte e olhar compenetrado, pausadamente, sem que eu o provocasse, acentuou palavras suas do tipo: - “O regime capitalista infunde medo até nos donos do próprio regime.” “Basta a paz entremear os seres, para sermos felizes”. “A História conta que tudo tende a desaparecer”. “Bush e outros líderes do mesmo estilo são doentes mentais.” “Dentro do sistema há que se ter um título, senão vira-se um João-Ninguém”. “O negro, por ter esta condição, deve demonstrar sua igualdade andando dentro dos trilhos.” “O sem-terra deve ter um comportamento irrepreensível”. “A religião é um engodo; o sistema exige que todos sejam enganados”.

A eloquência de Lucilia (ela parece conter em si uma jovem de 20 anos) não me permitiu anotar tudo. Acabei por ouvi-la... ouvi-la..., com a promessa de novos encontros. Vereadora em Campo Florido – gestão 1947 a 1951 – declara que só alcançou tal cargo devido à deposição de Getúlio Vargas – o “Bandidão”. “Ditadores tiraram um ditador, para voltar no dia 31 de março de 1964.” Sentenciou Lucilia. A eterna guerreira – ou memória política viva – rechaçou com ironia o que lhe disseram: - “Você é a reencarnação de Tiradentes”. Risos e... “Ora, só porque algo me fumega por dentro, sou a Tiradentes?”. Ah!!! Mais Risos.

Dois itens comentou demoradamente: 1) – Foi caseira de Anita Prestes, filha de Carlos Prestes. 2) – Tem um folheto a ela dedicado pelo grande Capitão, relíquia que não dá, não empresta e já está endereçada a um amigo, após a sua partida. Ali como modesto ouvinte, recebi mais uma página de sua memorável aula.

Quando lhe indaguei sobre políticos atuais, ouvi: - “Tudo está como antes; eles, os ideólogos, sabem dourar a pílula”, numa referência a Duda Mendonça. “Galinha esperta canta longe de onde botou o ovo”, referências ao marketing mentiroso. “Não vá atrás da cotovia que canta lindo. Ao se caçada, revela ser apenas um minúsculo passarinho”. Aí um ensinamento sobre o engano das aparências. “P... velha não acredita em amores”. Precisa de mais, leitor? Numa guinada rumo a fatos aqui ocorridos, a grande anfitriã lembrou com riqueza de detalhes o pistoleiro Aníbal Vieira (de Barretos ou Olímpia/SP), morto numa emboscada na Fazenda de Pedro Fidélis. O oficial, Capitão Altino, descarregou-lhe um fuzil 1908 quando dormia numa rede. Em um jornal – Gazeta de Uberaba – na Rua Artur Machado (calçadão) uma pessoa conhecidíssima matou um grande amigo, por ter errado o alvo.

Doca, o Orlando Ferreira, autor de “Terra Madrasta”, “O Pântano Sagrado” e outras obras, não saía de sua casa. Mostrou-se até o lugar onde aquele “inconveniente para o sistema de então” gostava de se sentar.

Pedi-lhe uma mensagem e ela foi enfática: - “Das pessoas devemos absorver as partes boas e criar uma coisa nova”.

Jovem Lucilia (II)

Jornal da Manhã, Uberaba, 24/dez/2004
Livro Perfis especiais - feitos e méritos, 2009
João Eurípedes Sabino

Então, continuando sobre a jovem Lucilia Soares Rosa, a quem abordei na última semana, a sensação que me ocorre é a de não parar quando tento descrevê-la. Permito-me aqui dizer que comprovei algo dito a mim, certa vez, sobre os seres irrequietos; eles não são “chegados” em colocar quadros nas paredes. A sala de Lucilia, na Avenida Alexandre Barbosa, nº 95, é despida de figuras ou adorações. Será por quê?

Ah, se tivéssemos mais algumas Lucilias por estes brasis! Em sua fala, está vivo o aconselhamento leninista: “Vamos botar fogo na fogueira e ter paciência revolucionária”. Quando vejo a letargia dos nossos governantes comparada ao pensamento de Lucilia (ela, apesar da idade, dispensa a ajuda de auxiliares), concluo comigo: Aquela mulher é superdimensionada para o seu tempo, e nós estamos deixando-a passar. É digna de um documentário.

Ao saber que a colega articulista Marta Zedinick de Casanova tem uma monografia extensa sobre Lucilia Soares Rosa – diga-se – sem o apoio oficial, reforça-me a tese de que as iniciativas de reconhecimento brotam naturalmente de um lado quando o verdadeiro merecimento está do outro.

É difícil falar de Lucilia, sem lembrar alguns dos seus feitos e posicionamentos. Por exemplo: ela sofre, mesmo à distância, ao ver o sofrimento de alguém conhecido ou não. Lembrou aí quanto padecem os pais dos jogadores Serginho e Júnior que tiveram mortes súbitas em campos de futebol. O fato de o motorista particular de Carlos Prestes não entender nadinha de política lhe causava, como revolucionária, profunda tristeza. A entrega de Olga Benário às forças alemãs não lhe sai do pensamento. Sempre refletiu e reflete ainda consigo: - “Por quê? Logo eu, uma mocinha do interior, ter as ideias que sempre tive e tenho? Sinto-me uma premiada”.

Fui ousado em perguntar-lhe sobre o porquê de existirem os sofridos andarilhos nas estradas. Respondeu-me: - “Tudo isso é fruto da acumulação de capital”. “Os traumas ocorrem pelo capital”. No fundo, lá... no fundo... Lucilia está certa; é só mergulharmos fundo na sua resposta.

Com a memória que substitui uma agenda, confidenciou-me: - “Esqueço-me literalmente de que não estou longe de partir, mas lembro-me sempre de que a vida continua”. Uma filósofa na concepção do termo.

Os filhos Moysés Soares Rosa e Calixto Rosa Neto, junto aos netos e bisnetos, compõem o dínamo que a impulsiona.

Lucilia não envelhece. Ela continuará sempre jovem.

João Eurípedes Sabino é engenheiro civil, presidente do Fórum Permanente dos Articulistas de Uberaba e Região e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Vereadora pra ninguém botar defeito

Folha de S. Paulo - Suplemento Mulher - 30/jan/1983
Paulo Paiva Nogueira

Há quase 40 anos, uma mineira do interior punha em prática as reivindicações feministas de hoje


Nascida em Uberaba (MG) há 70 anos, eleita vereadora em 1945 , após a queda do Estado Novo, Lucilia Soares Rosa é hoje uma mulher que divide seu tempo entre as lembranças e os cuidados dedicados a uma horta, uma plantação de morangos e algumas galinhas. Ela vive em sua cidade natal, onde poucos sabem ter sido uma das primeiras mulheres do país a enfrentar a luta política e a disputar um cargo político fincando assim um marco na história do movimento feminista do Brasil. “Hoje minha atitude pode até ser considerada importante – observa ela. Mas o principal é que lutei numa época em que senti o dever de participar, para tentar melhorar as condições de vida da população e da própria mulher.”

Na ebulição política do fim da Segunda Grande Guerra Mundial e do término do Estado Novo, Lucilia Rosa foi eleita, com votos de camponeses, pela legenda do PSD e numa pequena cidade distante 70 quilômetros de Uberaba: Campo Florido, na época com pouco mais de mil habitantes. “Recebi o apoio da zona rural, onde distribuíamos cartilhas de Monteiro Lobato, tentando conscientizar a população de seus direitos”, recorda-se ela. Antes disso, porém, já participara de outros movimentos políticos da região: seu pai Calisto Rosa, originário das hostes anarquistas, foi um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, no Triângulo Mineiro, na década de 20. “Meu pai sempre lutou pelos direitos humanos. Foi assim que ele liderou por melhores salários uma greve de alfaiates, em 1909, em Uberaba, conseguindo levar a categoria à vitória três dias depois”, acrescenta Lucilia.
“Ele era uma pessoa progressista, auxiliando-me bastante em minha formação política e para que eu rompesse algumas amarras da época, ainda enfrentadas por muitas mulheres até hoje”, diz ela. Como exemplo, cita o seu próprio casamento, do qual nasceram dois filhos – hoje dentistas e “bem situados” na vida. O marido era desquitado e os dois foram “obrigados” a assinar um contrato em Barretos (SP), medida incomum para a época. “O contrato foi uma agressão para a sociedade da época”, conta. “Mas assim mesmo acho que foi uma forma de concessão à sociedade, pois achava desnecessário como os outros papéis”. Outra façanha: depois de ter tido os dois filhos, foi submetida a uma operação de ligação de trompas, enfrentando até mesmo barreiras colocadas pela igreja.


“Era o ano de 1939: na época em que a Alemanha invadiu a Polônia. Durante a operação, o médico elogiou a agressão nazista, mostrando-se favorável tão triste regime. E confesso que fiquei com medo. Já imaginou se ele soubesse de minhas posições progressistas?”


Recentemente, a operação foi elogiada por um médico, que levou Lucilia até seus alunos para mostrar seu espírito de coragem e para que servisse de exemplo a outras mulheres. Seu pioneirismo, contudo, esbarrou até mesmo nas contrariedades do marido, que a teria impedido, se pudesse. “Acontece – diz Lucilia – que passei a cultivar minha libertação até mesmo da minha casa. Eu não queria ter mais filhos para evitar dificuldades na criação dos dois então existentes e não via nenhum mal na operação. Por isso, reuni um dinheirinho e eu mesma patrocinei minha operação.”


Além disso, mesmo contrariando os padrões vigentes, preocupou-se em educar os filhos de uma forma diferente: “Eu os ensinei a passar e lavar roupa, encerar a casa e a cuidar de hortas e galinhas, que a ajudavam em nosso sustento.” A seu ver, dessa maneira os filhos tiveram orientação para que preservassem uma vida independente e, simultaneamente, não tivessem preconceitos. “Não queria que eles olhassem as outras pessoas do modo como eu era olhada. Apesar disso, me lembro bem da juventude e dos grandes bailes dos quais participávamos. Eram festas magníficas.”

A política

Sua participação política foi iniciada na juventude, em Campo Florido, para onde se mudou aos 19 anos de idade. “Eu ajudava meu pai nas tarefas do partido (PCB), sempre interessada em participar dos acontecimentos”, diz. A mudança ocorreu depois de ela ter cursado, por algum tempo, a escola Normal (equivalente ao 2º grau de hoje) em Uberaba. Na época, os sindicalistas da cidade que haviam abandonado a corrente anarquista mantinham estreita ligação com o jornal comunista L’Humanitè, da França, que chegou a publicar várias matérias da região. “Através desse jornal, na década de vinte, ficamos conhecendo a letra de A Internacional comunista, que veio acompanhada da partitura. Imagine o trabalho que isso deu para alguns músicos comunistas da época”, conta Lucilia.

Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, ela acompanhou com interesse a movimentação das tropas na região. “Mas apesar dos problemas surgidos com a Revolução, eu não hesitava em discutir com oficiais – conta. Um certo dia, na pensão em que eu trabalhava em Campo Florido, discuti com um oficial que achava mandar também ali. Ora, e os nossos direitos?”

Com o surgimento do integralismo, também em 1932, surgiram vários problemas para ela e outros militantes de esquerda da época. “A sorte nossa é que o delegado da cidade era também integrante da Aliança Nacional Libertadora”.

Mordendo o delegado
Sua campanha para se eleger vereadora foi realizada nas lavouras do município, percorridas a pé “porque não havia carros e o dinheiro simplesmente não existia”. Lucilia era conhecida na cidade e na zona rural, mas mesmo assim sofreu “inúmeras dificuldades, pois a violência política da época era maior”. O prefeito eleito, Bruno da Silva e Oliveira Júnior, por exemplo, era da UDN e até hoje é conhecido como “coronel” na região, por suas posições conservadoras. Certo dia, o prefeito resolveu “invadir” a Câmara de Campo Florido para demonstrar sua força. “Mas eu conhecia todo o regulamento interno da Câmara e exigi sua retirada. Ele saiu e poucos acreditaram que uma mulher conseguira tal façanha.” Em outra ocasião, ainda como vereadora, ela foi presa por tentar defender um camponês. “Aprontei um grande falatório, xinguei e mordi o braço do delegado.”

Na época ela era quase tão magra quanto hoje, mas com a mesma agilidade que ainda se manifesta nos menores gestos. E por morder o delegado, ele chegou a comentar que o único “homem” que havia na cidade era ela. “Essa era uma visão machista dele, mas acho que foi um ato de coragem de minha parte, diante da violência dos policiais da época, quase tão agressivos como os de hoje.”

Terminado o mandato, Lucilia Rosa retornou a Uberaba, onde tentou disputar o Legislativo local. Foi impedida, com o registro da candidatura cassado por um juiz da UDN que a acusou de “comunista”. No início da década de 50, ela participou de vários movimentos de mulheres em Uberaba, entre os quais o que exigia água encanada para alguns bairros da cidade “apesar das ameaças da UDN”. E participou também do movimento, em nível nacional, contra o envio de tropas brasileiras à Coréia. “Nós realizamos um encontro na União Feminina de Uberlândia, que resultou em repressão e várias companheiras feridas.”

Empregada doméstica

Depois, no final da década de 50, por necessidades econômicas mudou-se para São Paulo, onde trabalhou durante 14 anos como empregada doméstica de vários políticos paulistas, entre os quais Ivete Vargas. “Em São Paulo, não deixei a atividade política, não, e participei também da Associação das Empregadas Domésticas. Lembro-me também do comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, aonde fui levar meu apoio a Jango.”


A vida de Lucilia, hoje, é modesta como sempre foi: mora em uma casa simples e antiga, faz sua comida num fogão a lenha e não tem ajuda de ninguém. “Tenho saúde boa, porque tomo apenas remédios homeopáticos e levo uma vida saudável”, frisa. Sua liberdade é o resultado de toda uma vida.
“Sempre lutei contra a censura interna e acho que esse é um problema que ainda atinge a maioria das mulheres. Muitas coisas que aconteceram com as mulheres até hoje eu já havia discutido com meu pai, na década de 30. Mas a libertação da mulher só ocorrerá com a libertação da sua mente, e que depende da criação de um outro sistema econômico. Do contrário, estaremos ainda presas a muitos problemas.”

Viver

A libertação da mulher também depende do conhecimento do mundo à sua volta, através de leituras, comenta Lucilia: “Fiquei muito tempo sem ler e agora, aos 70 anos de idade, vejo a importância do conhecimento, para conhecer várias idéias que circulam.” Ela está lendo, pela primeira vez, o livro de John Reed, Dez Dias que Abalaram o Mundo, sobre a revolução dos soviets em 1917, além de outras obras de conteúdo sócio-político: “Mesmo com a velhice, ainda tenho muita vontade de viver.”

Paulo Paiva Nogueira era correspondente da Folha de S. Paulo em Uberaba (MG). Atualmente trabalha para a Assessoria de Imprensa da Liderança do PT, na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), onde reside.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Alma tenaz que não se curva

Carlos Perez
Conhecer e conviver com dona Lucilia é um privilégio raríssimo. Em tempos onde a ideologia foi subsitituida pela ilusão do poder, o nome e a vida de Lucilia é quase um sonho utópico. Sua alma tenaz que não se curva, vai além dos nomes de quaisquer doutrinas, partidos, bandeiras.

Seu tempo é o futuro. Sua história é a posteridade. Seus filhos estão além das gerações que possamos vislumbrar. Num mundo consumista e capitalista, Lucilia é o exemplo da simplicidade e do despojamento. Lucilia é o ser, imprescindivelmente antes, muito antes do ter. E ao ter renuncia e compartilha.

É exemplo de ser humano, além dos dogmas religiosos ou partidários. Einstein dizia, sobre Mahatma Gandhi, que as gerações futuras duvidariam que um ser assim tivesse existido. Afirmo o mesmo para dona Lucilia. Ela é a prova viva de que a ideologia pode sobreviver ao ego e a utopia sobreviver à realidade. Sonhar, mas um sonho impossível? Viver esse sonho impossível! Lucilia... Luz rara em um mundo de visão turva.

Carlos Perez, músico, professor e mora em Uberaba (MG).

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Os caminhos de uma rebelde

Luiz Alberto Molinar

Lucilia Rosa, aos 35 anos, foi uma das 16 primeiras vereadoras eleitas, em Minas. Ela é de Uberaba, mas morava em Campo Florido {70km de Uberaba}, onde conquistou, em 1947, uma cadeira da Câmara Municipal. Foi escolhida pelo PSD, porém era militante do PCB (Partido Comunista do Brasil) desde os 18 anos, quando filiou-se e foi batizada como "Lucrécia", seu "nome de guerra".

Ousou e enfrentou preconceitos ao ligar as trompas, em 1939, depois de ter dois filhos. Essa operação somente realizava-se na Europa. Foi presa duas vezes. Em 1949, ao cuspir no rosto do delegado, em Campo Florido. Ficou detida por 13 dias ao participar de manifestação contra o envio de jovens brasileiros para a Guerra na Coreia. Foi em 1951, em Uberlândia. Morou, em São Paulo, durante 15 anos, de 1958 a 1972, quando trabalhou como doméstica, entre outras patroas, para a deputada federal Ivete Vargas (PTB), sobrinha do presidente Getúlio Vargas, que conseguiu-lhe emprego na Caixa Econômica e nos Correios. Rejeitou e manteve-se na profissão que possibilitou-lhe as formaturas, em odontologia, dos dois filhos.

Ela chegou aos 97 anos, em agosto de 2009, e tem memória extraordinária. Possui um acervo rico de documentos, entre eles, correspondências que manteve com Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do PCB entre os anos de 1930 e 1980, e com Anita Leocádia, filha dele com Olga Benário, morta em campo de concentração nazista, na Alemanha. Lucilia mantém contato permanente com ela há mais de 30 anos. Moraram juntas durante dois anos e meio, entre 70 e 72, clandestinamente, durante os mais sangrentos da ditadura militar, em São Paulo. Passava-se por tia de "Alice Nascimento", codinome de Anita. Residiu também, durante três meses em 1962, com a família de Prestes, a quem ajudava a cuidar de seis dos sete filhos.

Sua vida vai ser registrada em livro: Lucilia - Rosa Vermelha. O projeto de pesquisa sobre sua história surgiu durante visita do presidente da Câmara de vereadores de Uberaba, Lourival dos Santos (PC do B), a ela. Estava, em 2006, com a saúde debilitada após 25 dias em coma. Ao ser indagada sobre seu sonho, disse que gostaria de ter sua trajetória publicada em livro. A partir daí a diretora de Comunicação do Legislativo, Evacira de Coraspe, coordena o trabalho desenvolvido pela historiadora Luciana Maluf Vilela e pelo jornalista Luiz Alberto Molinar. A obra, que será lançada em 2009, vai revelar a personalidade, os caminhos de Lucilia, de libertários, anarquistas, socialistas. Enfim, a origem dos movimentos populares e de seus protagonistas, em Uberaba e região, desde o final do século 19 até 2000.

Luiz Alberto Molinar é jornalista e mora em Uberaba (MG).

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Tal pai, tal filha

Benito Caparelli
Tenho pela senhora Lucilia Soares Rosa e seu estimado culto e admirado pai, Calisto Rosa, a maior admiração e apreço. Com este último, tive o prazer e a agradável satisfação de reunir-me, juntamente com alguns companheiros, nos primórdios de minha atividade política e, inversamente, no ocaso da militância dele, vez que, já quase nonagenário, porém, conservando lucidez e memória impressionantes, nos aconselhava e relatava suas gestões políticas em Uberaba, e cidades circunvizinhas, sua ativa participação na fundação do sindicato dos alfaiates, considerado o primeiro órgão político-social de representação classista da cidade, lá pelos idos de 1920.

Dissertava sobre os fatos da ocorridos no país e em nossa cidade, com extraordinária clareza e riqueza de detalhes, mormente se relacionados com a fundação do Partido Comunista do Brasil e a vinculação deste com a Internacional Comunista, discorrendo sobre a personalidade de cada um dos líderes deste movimento político-ideológico, citando corretamente os nomes e as atividades de cada uma dessas lideranças.


Sobre a doutrina marxista, o Velho Calisto era professor emérito, já que havia acumulado cultura autodidata superior a de muitos dos intelectuais diplomados que conheci. Falava e discutia a filosofia de Marx e Engels como ninguém e, eu, ficava, simplesmente, encantado e perguntando-me como um simples operário, como ele, era capaz de ter amealhado tanta cultura política. De tão embevecido que permanecia como que, parafraseando Quintiliano Jardim, diria, agora: "Uberaba de antanho e Uberaba de agora, não sei qual das duas quero mais. Se a de meus dias joviais ou se dos meus dias outonais".


Seu Calisto, como era chamado, historiava a vida política de Josef Stalin, que foi secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, de 1922 até 1953, logo após a morte do líder da Revolução Russa de 1917, Vladimir Lênin; do intelectual revolucionário Leon Trotsky, morto brutalmente a machadadas no México, em 1940, onde se encontrava asilado, de quem era grande admirador; de Alexander Kerensky, que foi primeiro-ministro da jovem república russa e ministro da Guerra da União Soviética, no período revolucionário, e de tantos outros iniciadores da doutrina socialista.


Relatava, minuciosamente, as estratégias da Segunda Guerra Mundial, principalmente em relação à invasão alemã na União Soviética, discorrendo, particularmente, sobre o cerco de Stalingrado e o heroísmo desse povo que, malgrado ter perdido milhões de cidadãos, despreparados para a guerra, ainda conseguiu derrotar o exército nazista, numa das mais belas epopeias da humanidade. Sobre a biografia de Prestes, o seu exílio e o casamento com Olga Benario Prestes, era profundo conhecedor e fiel transmissor de fatos.


Não sei se ele chegou a participar da Revolução de 1930, mas foi assíduo sabedor dos intrincados fatos políticos da ocasião, mormente sobre a ditadura Vargas, a quem enaltecia os avanços legais na conquista dos parcos direitos tuitivos da classe operária e, ambiguamente, tecia ardorosas críticas à falta de liberdade política e o distanciamento da ditadura dos mais comezinhos princípios democráticos.


Era, simplesmente, encantador ouvi-lo. Sua filha Lucilia, a quem dedicamos nossa mais fiel estima e consideração, não fugiu à regra e nem distanciou-se dos ensinamentos do pai. Melhor será dizer, tal pai, tal filha. Saiu à sua imagem. Conheci-a como membro ativo do incipiente do movimento comunista de Uberaba, que nem mesmo chegou a se transformar em partido político, por razões óbvias de sua injusta ilegalidade e, "et por cause", ser a nossa cidade centro político de visão estreitamente direitista, eminentemente ruralista e tradicionalista, arraigada às suas raízes e ligações profundas com o coronelismo, então vigente.


Não há dúvida de que havia, então, autêntico conflito ideológico entre a nova doutrina socialista, por nós anunciada, batendo de frente com as arcaicas normas legais, relacionadas com o trabalho do homem no campo e no convívio com seus senhores patronais, os quais sempre mantinham representação política, nas mais diversas órbitas administrativas, quer elegendo prefeitos, vereadores e deputados, que lhes garantissem destaque social, isentos de qualquer tipo de contrariedade econômica de origem legislativa, que pudesse impor-lhes tributos destinados à assistência social e previdenciária de seus serviçais.


Basta dizer que, durante o governo de Getúlio Vargas, de longa duração, as poucas legislações de natureza social destinadas à proteção ao homem do campo, advieram de decretos legislativos, sem qualquer origem no colegiado congressista do país.


Não quero dizer, com isto, que todos os agricultores ou pecuaristas de Uberaba, que mantinham inúmeros empregados em suas fazendas eram retrógrados ou, como dizíamos na ocasião, reacionários. Haviam os bons, como ainda há. Aliás, foi na observação do comportamento social de alguns deles é que me tornei admirador da doutrina socialista.


Não raro, caminhando pela praça Santa Terezinha, nos finais de semana, era comum verificar que na porta da residência do inolvidável coronel Ranulfo Borges sempre havia uma leva de velhos e velhas, famintos e indigentes, todos egressos de serviços rurais da região, pedindo alimentos para si e sua prole, por não mais terem capacidade laborativa, dos quais tive a oportunidade de vir a saber: não eram ex-empregados deste bondoso senhor, mas, nem por isso, deixavam de receber tal messe.


O mesmo, semanalmente, ocorria na porta do senhor Felício Frange, no bairro Estados Unidos, como, também, na residência do extraordinário senhor Fued Hueb, no bairro São Benedito. Não me perdoaria se não fizesse registro das incomensuráveis filas de indigentes e de toda sorte de outros pedintes, nas portas do templo espiritual comandado pelo inesquecível Chico Xavier, em busca de iguais socorros alimentares. Quem, da minha idade, não assistiu a tão triste espetáculo do ponto de vista político-social?


Daí, para mim, adveio a indagação: por que estas pessoas, que por tantos anos trabalharam duro e pesadamente nos serviços rurais não mereciam uma aposentadoria digna e, ao menos, capaz de dar-lhes sustentáculo alimentar, e abrigo por moradia condigna? Qual o porquê da orfandade legal e política desses cidadãos, mal saídos do período em que reinava a escravidão?


Desta indignação, à ação política, para mim e para tantos outros companheiros, inclusive a altruísta Lucilia, foi um simples passo. Juntamente com outras forças políticas, religiosas e sindicais urbanas, considerando ser extremamente necessário a politização desses desamparados camponeses, passamos a fundar sindicatos rurais nas mais diversas localidades e demais distritos suburbanos, sempre aos domingos ou em ocasiões de festas tradicionais, procurando dar a esses relegados trabalhadores da nação a indispensável orientação política, para formação de respectivas unidades sindicais, bem assim, esclarecendo-lhes da importância de seus votos eleitorais, na busca de seus verdadeiros representantes políticos, objetivando a conquista dos direitos que lhes eram inerentes, mas, que, infelizmente, sempre lhes foram negados.


E, lá, sempre, estava presente a companheira Lucilia, encarregada da discussão política com as mulheres dos trabalhadores, cujo missão era quase impossível ser praticada por homens. Deixava, ela, seus afazeres familiares domésticos, em detrimento da causa política, por considerar esta de maior importância naquela ocasião. Expressando com imensa facilidade e falando o linguajar fácil das pessoas do campo, lá estava a companheira Lucilia cumprindo honrosamente o seu munus esclarecedor, além de distribuir panfletos e jornais de edição operária, estampados com registros de conquistas desses trabalhadores em outros rincões.


Posso afirmar, com absoluta segurança, a inexistência de outras mulheres naquela ocasião, atuando na "frente de combate" de tais atividades, motivo pelo que considero a companheira Lucilia a pioneira e a percussora desta efeméride política, pelo que deve ser relembrada e enaltecida para a posteridade e página destacada de sua biografia, a ser lançada, brevemente, pela historiadora Luciana Maluf e pelo jornalista Luiz Alberto Molinar, que, em boa hora, assim foi determinado pela Câmara Municipal de Uberaba, da qual tive a honra de participar, ainda que por breve tempo.



Benito Caparelli ("nome de guerra: Natal") {Uberlândia, 1935- }, agnóstico e advogado trabalhista. Vereador do PCB (Partido Comunista Brasileiro) eleito, em 1962, pelo PL (Partido Libertador), em Uberaba, e cassado após o Golpe Civil-Militar de 1964. Se apresentou ao 4º Batalhão da Polícia Militar e foi detido. Transferido para a Penitenciária Magalhães Pinto, em Ribeirão das Neves, próximo a Belo Horizonte. Ficou preso durante 105 dias. Advogou para o sindicato dos comerciários de Uberaba e fundou as entidades de trabalhadores rurais de Conceição das Alagoas, Água Comprida, Planura, Frutal, Ituiutaba, Veríssimo e Uberaba. Foi juiz do Trabalho em Mato Grosso. Aposentado, mora em Brasília (DF).

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O casamento e o padre

Marco Antônio Paiva Nogueira

Amigos confrades, cultos, inteligentes e esclarecidos cidadãos, emprestem-me os olhos para o blog de dona Lucilia Rosa, cidadã de Minas, uberabense, uma das pioneiras do comunismo no Triângulo Mineiro. Filha de Calisto Rosa, dos primeiros habitantes de Esplanada, hoje Planura, na década de 40, homem culto, íntegro e muito amigo de meu bisavô coronel João Januário da Silva e Oliveira, fundador de Esplanada, no Triângulo Mineiro.

Vale a pena conhecer o seu blog e ver alguns vídeos, que trazem boas entrevistas com a respeitável e admirável Lucilia - Rosa Vermelha, e seus também cultos e honrados filhos: Calixtinho e Moyzés.

Relato aqui um caso ocorrido no dia de meu casamento, em Frutal, em 12 de julho de 1968, quando Lucilia Rosa, provocada pelo padre celebrante da cerimônia, um capuchinho mal-educado, italiano, de nome frei Davi, que lhe chamara a atenção por ter subido no púlpito, buscando melhor visão do ritual, dizendo-lhe que ali era lugar do padre, ela, Lucilia, responde: "Respeite-me, eu sou convidada da mãe do noivo. Este lugar não é só do padre, mas de todos que estão neste templo, pois foi com o dinheiro deles que foi construído". E no púlpito permaneceu até o fim da cerimônia, para o mau-humor do padre.

Uma só palavra à dona Lucilia: Nada importa você acreditar em Deus. O que pesa é Deus acreditar em você. E por seu exemplo de vida, por todo o bem que semeou à nossa gente, aos humildes, aos amigos, temos absoluta certeza de que ele jamais deixou de acreditar em você.

Abraços


Marco Antônio Paiva Nogueira é bancário aposentado e foi vereador de Planura (MG), de 1970 a 1972, pela Arena. Mora em Belo Horizonte (MG).