"Vou [morrer] de alma lavada. Estou feliz!"

"A herança que vou deixar são minhas idéias, que ninguém rouba, ninguém toma, ninguém compra."

Lucilia.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Vereadora pra ninguém botar defeito

Folha de S. Paulo - Suplemento Mulher - 30/jan/1983
Paulo Paiva Nogueira

Há quase 40 anos, uma mineira do interior punha em prática as reivindicações feministas de hoje


Nascida em Uberaba (MG) há 70 anos, eleita vereadora em 1945 , após a queda do Estado Novo, Lucilia Soares Rosa é hoje uma mulher que divide seu tempo entre as lembranças e os cuidados dedicados a uma horta, uma plantação de morangos e algumas galinhas. Ela vive em sua cidade natal, onde poucos sabem ter sido uma das primeiras mulheres do país a enfrentar a luta política e a disputar um cargo político fincando assim um marco na história do movimento feminista do Brasil. “Hoje minha atitude pode até ser considerada importante – observa ela. Mas o principal é que lutei numa época em que senti o dever de participar, para tentar melhorar as condições de vida da população e da própria mulher.”

Na ebulição política do fim da Segunda Grande Guerra Mundial e do término do Estado Novo, Lucilia Rosa foi eleita, com votos de camponeses, pela legenda do PSD e numa pequena cidade distante 70 quilômetros de Uberaba: Campo Florido, na época com pouco mais de mil habitantes. “Recebi o apoio da zona rural, onde distribuíamos cartilhas de Monteiro Lobato, tentando conscientizar a população de seus direitos”, recorda-se ela. Antes disso, porém, já participara de outros movimentos políticos da região: seu pai Calisto Rosa, originário das hostes anarquistas, foi um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, no Triângulo Mineiro, na década de 20. “Meu pai sempre lutou pelos direitos humanos. Foi assim que ele liderou por melhores salários uma greve de alfaiates, em 1909, em Uberaba, conseguindo levar a categoria à vitória três dias depois”, acrescenta Lucilia.
“Ele era uma pessoa progressista, auxiliando-me bastante em minha formação política e para que eu rompesse algumas amarras da época, ainda enfrentadas por muitas mulheres até hoje”, diz ela. Como exemplo, cita o seu próprio casamento, do qual nasceram dois filhos – hoje dentistas e “bem situados” na vida. O marido era desquitado e os dois foram “obrigados” a assinar um contrato em Barretos (SP), medida incomum para a época. “O contrato foi uma agressão para a sociedade da época”, conta. “Mas assim mesmo acho que foi uma forma de concessão à sociedade, pois achava desnecessário como os outros papéis”. Outra façanha: depois de ter tido os dois filhos, foi submetida a uma operação de ligação de trompas, enfrentando até mesmo barreiras colocadas pela igreja.


“Era o ano de 1939: na época em que a Alemanha invadiu a Polônia. Durante a operação, o médico elogiou a agressão nazista, mostrando-se favorável tão triste regime. E confesso que fiquei com medo. Já imaginou se ele soubesse de minhas posições progressistas?”


Recentemente, a operação foi elogiada por um médico, que levou Lucilia até seus alunos para mostrar seu espírito de coragem e para que servisse de exemplo a outras mulheres. Seu pioneirismo, contudo, esbarrou até mesmo nas contrariedades do marido, que a teria impedido, se pudesse. “Acontece – diz Lucilia – que passei a cultivar minha libertação até mesmo da minha casa. Eu não queria ter mais filhos para evitar dificuldades na criação dos dois então existentes e não via nenhum mal na operação. Por isso, reuni um dinheirinho e eu mesma patrocinei minha operação.”


Além disso, mesmo contrariando os padrões vigentes, preocupou-se em educar os filhos de uma forma diferente: “Eu os ensinei a passar e lavar roupa, encerar a casa e a cuidar de hortas e galinhas, que a ajudavam em nosso sustento.” A seu ver, dessa maneira os filhos tiveram orientação para que preservassem uma vida independente e, simultaneamente, não tivessem preconceitos. “Não queria que eles olhassem as outras pessoas do modo como eu era olhada. Apesar disso, me lembro bem da juventude e dos grandes bailes dos quais participávamos. Eram festas magníficas.”

A política

Sua participação política foi iniciada na juventude, em Campo Florido, para onde se mudou aos 19 anos de idade. “Eu ajudava meu pai nas tarefas do partido (PCB), sempre interessada em participar dos acontecimentos”, diz. A mudança ocorreu depois de ela ter cursado, por algum tempo, a escola Normal (equivalente ao 2º grau de hoje) em Uberaba. Na época, os sindicalistas da cidade que haviam abandonado a corrente anarquista mantinham estreita ligação com o jornal comunista L’Humanitè, da França, que chegou a publicar várias matérias da região. “Através desse jornal, na década de vinte, ficamos conhecendo a letra de A Internacional comunista, que veio acompanhada da partitura. Imagine o trabalho que isso deu para alguns músicos comunistas da época”, conta Lucilia.

Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, ela acompanhou com interesse a movimentação das tropas na região. “Mas apesar dos problemas surgidos com a Revolução, eu não hesitava em discutir com oficiais – conta. Um certo dia, na pensão em que eu trabalhava em Campo Florido, discuti com um oficial que achava mandar também ali. Ora, e os nossos direitos?”

Com o surgimento do integralismo, também em 1932, surgiram vários problemas para ela e outros militantes de esquerda da época. “A sorte nossa é que o delegado da cidade era também integrante da Aliança Nacional Libertadora”.

Mordendo o delegado
Sua campanha para se eleger vereadora foi realizada nas lavouras do município, percorridas a pé “porque não havia carros e o dinheiro simplesmente não existia”. Lucilia era conhecida na cidade e na zona rural, mas mesmo assim sofreu “inúmeras dificuldades, pois a violência política da época era maior”. O prefeito eleito, Bruno da Silva e Oliveira Júnior, por exemplo, era da UDN e até hoje é conhecido como “coronel” na região, por suas posições conservadoras. Certo dia, o prefeito resolveu “invadir” a Câmara de Campo Florido para demonstrar sua força. “Mas eu conhecia todo o regulamento interno da Câmara e exigi sua retirada. Ele saiu e poucos acreditaram que uma mulher conseguira tal façanha.” Em outra ocasião, ainda como vereadora, ela foi presa por tentar defender um camponês. “Aprontei um grande falatório, xinguei e mordi o braço do delegado.”

Na época ela era quase tão magra quanto hoje, mas com a mesma agilidade que ainda se manifesta nos menores gestos. E por morder o delegado, ele chegou a comentar que o único “homem” que havia na cidade era ela. “Essa era uma visão machista dele, mas acho que foi um ato de coragem de minha parte, diante da violência dos policiais da época, quase tão agressivos como os de hoje.”

Terminado o mandato, Lucilia Rosa retornou a Uberaba, onde tentou disputar o Legislativo local. Foi impedida, com o registro da candidatura cassado por um juiz da UDN que a acusou de “comunista”. No início da década de 50, ela participou de vários movimentos de mulheres em Uberaba, entre os quais o que exigia água encanada para alguns bairros da cidade “apesar das ameaças da UDN”. E participou também do movimento, em nível nacional, contra o envio de tropas brasileiras à Coréia. “Nós realizamos um encontro na União Feminina de Uberlândia, que resultou em repressão e várias companheiras feridas.”

Empregada doméstica

Depois, no final da década de 50, por necessidades econômicas mudou-se para São Paulo, onde trabalhou durante 14 anos como empregada doméstica de vários políticos paulistas, entre os quais Ivete Vargas. “Em São Paulo, não deixei a atividade política, não, e participei também da Associação das Empregadas Domésticas. Lembro-me também do comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, aonde fui levar meu apoio a Jango.”


A vida de Lucilia, hoje, é modesta como sempre foi: mora em uma casa simples e antiga, faz sua comida num fogão a lenha e não tem ajuda de ninguém. “Tenho saúde boa, porque tomo apenas remédios homeopáticos e levo uma vida saudável”, frisa. Sua liberdade é o resultado de toda uma vida.
“Sempre lutei contra a censura interna e acho que esse é um problema que ainda atinge a maioria das mulheres. Muitas coisas que aconteceram com as mulheres até hoje eu já havia discutido com meu pai, na década de 30. Mas a libertação da mulher só ocorrerá com a libertação da sua mente, e que depende da criação de um outro sistema econômico. Do contrário, estaremos ainda presas a muitos problemas.”

Viver

A libertação da mulher também depende do conhecimento do mundo à sua volta, através de leituras, comenta Lucilia: “Fiquei muito tempo sem ler e agora, aos 70 anos de idade, vejo a importância do conhecimento, para conhecer várias idéias que circulam.” Ela está lendo, pela primeira vez, o livro de John Reed, Dez Dias que Abalaram o Mundo, sobre a revolução dos soviets em 1917, além de outras obras de conteúdo sócio-político: “Mesmo com a velhice, ainda tenho muita vontade de viver.”

Paulo Paiva Nogueira era correspondente da Folha de S. Paulo em Uberaba (MG). Atualmente trabalha para a Assessoria de Imprensa da Liderança do PT, na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), onde reside.

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