"Vou [morrer] de alma lavada. Estou feliz!"

"A herança que vou deixar são minhas idéias, que ninguém rouba, ninguém toma, ninguém compra."

Lucilia.

domingo, 29 de novembro de 2009

Mais uma vez, história!

Blog Colcha de Retalhos, 20 set/2009
Angélica Marchiori

"(...) encontrei um blog de uma senhorinha linda: Lucília Rosa Vermelha. Guerreira, revolucionária, que como muitos nesse país lutou por uma sociedade mais justa em um dos períodos mais densos de nossa história. Leio, choro, emociono-me. Gostaria de conhecer Lucília, Anita e mais Lucílias, Anitas, Luises, Zuzus e anônimos que escreveram a história do país com luta, com sangue... Quem sabe em algum momento, não é?  (...)"

Angélica Marchiori é educadora, historiadora e reside em Piracicaba (SP). É autora do blog Colcha de Retalhos: http://colchatalhos.blogspot.com/

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Idade e paixão revolucionária

Revista Destaque In, Sacramento, mar/abr 2008
Lauro Guimarães

A trajetória de Lucilia Rosa é algo bastante raro em termos de coerência e forte ligação entre convicção e história de vida.

Teve contato com as idéias socialistas já na infância dos longínquos anos 20, em uma Uberaba controlada pela aristocracia rural, cidade então muito pequena e que respirava sob o clima pesado de religiosidade católica sufocante, preconceituoso e retrógrado.

Cresceu absorvendo o ateísmo do pai Calisto Rosa, precursor ativista social do princípio do século XX, militante inicialmente adepto do anarquismo, que ousava ser um assumido contestador das instituições reinantes, em pleno auge do coronelismo violento e castrador de qualquer insubordinação a seu completo domínio.

Tendo conseguido estudar muito pouco, Lucilia pôde, entretanto, conhecer os livros marxistas que maravilharam o alfaiate Calisto Rosa e o fizeram converter seu ideal transformador, do Anarquismo, para o Marxismo que se procurava implantar na Rússia, então recém saída da vitoriosa revolução de outubro, cujas notícias da tomada do poder por soldados e operários em armas, corriam mundo.

Mesmo integrando um número pequeno e insuficiente de idealistas, movidos pela generosidade e pela crença inabalável no socialismo, Lucilia logo se perfilou, em Uberaba e acolá, junto a companheiros que se dispunha, como ela, a remover gigantescos obstáculos em busca de uma nova sociedade, igualitária e fraterna.

Problemas e questionamentos existenciais pelos quais todos nós passamos, não foram capazes de abalar sua certeza inquebrantável no advento de novos tempos, para os quais cabia lutar.

Militante comunista desde muito jovem, combativa vereadora na pequenina cidade de Campo Florido em 1947, ao se bater pelos direitos dos despossuídos, confrontou ali também com a prepotência do poder dominante.

Empregada doméstica em casas de gente rica, a vida toda ganhando salários baixos, Lucilia teve que fazer um intenso sacrifício para conseguir educar e formar seus dois filhos.

Morou por vários anos na capital paulista, onde conviveu com o então secretário-geral do Partido Comunista do Brasil, (PCB naquela época) Luiz Carlos Prestes, conhecido no Brasil e no exterior, por décadas, como o legendário Cavaleiro da Esperança.

Tornou-se íntima das irmãs do dirigente comunista e, principalmente, de Anita Leocádia, filha de Prestes com Olga Benário, a alemã assassinada em 1942 pelas forças nazistas no campo de concentração de Bernburg.

Conseguiu detectar, com sabedoria, a nefasta influência das relações capitalistas de produção como grande causadora de conflitos pessoais, denunciando e alertando contra anseios e valores burgueses difundidos e martelados incessantemente nas cabeças dos seres humanos, seja através dos meios de comunicação ou de outros instrumentos de transmissão ideológica.

Nos perigosos anos 70, viveu na clandestinidade em São Paulo, escondendo sob disfarce a famosa filha de Prestes, intensamente procurada pela Polícia.

Por nada menos que seis décadas, enquanto o Partido estava a serviço da causa e suas ações se fundiam com os ideais revolucionários, a dedicação de Lucilia ao Partido foi sua primordial tarefa e preocupação, as quais todas as demais, sem exceção, estiveram subordinadas.

Ao longo de sua vida quase centenária não cultivou nenhum projeto pessoal de riqueza ou de conforto material que pudesse desviá-la da priorização da causa dos oprimidos.

Quando adveio a desilusão e discordância com os rumos e a linha do Partido, foi com tristeza que ela efetuou o inevitável afastamento daquele símbolo para o qual tanto lutou. No entanto deu prosseguimento firme à dedicação direta às mesmas causas de antes. Ao contrário de tantos que usaram os erros do Partido para renegar a luta e alguns até para passar a servir à direita, aqui também Lucilia foi extremamente digna.

Foi assim que, em 1980, manteve-se alinhada às novas posições políticas de Prestes, quando do rompimento entre o “Velho“, que havia retornado ao Brasil um ano antes, vindo do exílio, e o PCB moderado que emergia da clandestinidade.

Nos mesmos anos 80 participou ativamente Dona Lucilia da organização e das atividades do Centro de Integração da Mulher (CIM), entidade feminista atuante em Uberaba naqueles anos.

Com a auto-decretação do fim do seu antigo PCB, em 1992, quando a convidaram a aderir à nova agremiação partidária que surgia o Partido Popular Socialista (PPS) ela dizia de forma bem objetiva: "Esse 'Pepsi' não vai a lugar nenhum".

Continuou acreditando numa sociedade fundada na igualdade, e qual não foi sua alegria ao saber que na vizinha cidade de Campo Florido, onde sofreu violência policial e humilhações em virtude de seu espírito combativo, um enorme latifúndio havia sido ocupado em 1993 por dezenas de famílias sem-terra. Lucilia apoiou como pôde os ocupantes da área, auxiliando-os de todo modo e tornando-se também amiga de muitos deles, hoje assentados e gerando produção em uma terra antes abandonada.

Sempre se pautou por um notável despojamento, humildade pessoal e material, prestando integral solidariedade aos que lutam pelas causas sociais mais nobres.

Conquistou a amizade familiar e a gratidão eterna da família de Prestes, das irmãs do “Velho”, Eloísa, Clotilde, Lúcia e a mais nova, Lygia, por ter sido tão corajosa e devotada na tarefa partidária de proteger Anita em São Paulo, nos anos mais negros e arriscados da ditadura militar. Este cultivado carinho e admirações mútuas fizeram Dona Lucilia e a família do "Velho" trocarem cartas constantes.

Os revezes de toda ordem que a vida costuma trazer, sejam eles de caráter pessoal ou coletivo, como o foi o desabamento da União Soviética para Dona Lucilia, não a levaram a abdicar e, muito menos, renegar ou maldizer suas convicções e posições políticas.

Isso porque sempre foram posições tomadas com profundidade, radicais, porém não da tonalidade e conteúdo de um esquerdismo infantil.

Várias foram também as pessoas que a olharam, no decorrer deste bem extenso caminho, com o desprezo cultivado aos esconjurados “radicais“, ignorando que os atos e posicionamentos políticos de Lucilia se guiavam pela saudável radicalidade na acepção genuína do termo, daqueles que vão à raiz das questões.

As avaliações de todos que a conheceram ou conhecem, sempre estiveram marcadas por dois ângulos opostos de visão: baixinha destemida, brava mulher, altamente idealista, na ótica de seus companheiros e admiradores, ou; inversamente, apenas uma mulher geniosa, no entanto perigosa comunista, da qual se devia guardar distância, para os que abominam suas ideias.

Tão rica em tempo de existência e de luta, Lucilia, materialmente pobre, encarna de forma desafiadora, na velhice, a perene juventude daqueles lutadores sociais exemplares, que ininterruptamente travaram o bom combate, os imprescindíveis, nos dizeres famosos de Brecht.

Numa época em que divergir e contestar a ordem estabelecida era extremamente mais penoso do que hoje, Lucilia se atreveu a conduzir sua vida para longe do marasmo e da modorra própria das existências banais, daqueles que ficam o tempo todo, conforme a letra da música de Raul Seixas, "sentado no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar!".

Dotada de sagrada inquietude transformadora, não se permitiu ser tragada pelo egoísmo pessoal e familiar que emburrece, castra e aliena as pessoas, tornando-as reprodutoras inconscientes e apatetadas da dinâmica social e econômica que favorece o processo de acúmulo do capital para poucos e a submissão da maioria.

Rigorosa, consigo mesmo e com os outros, muitas vezes dogmática na forma e no método, poucos seres humanos, entretanto, ao longo de um percurso tão longo de vida, têm sido tão coerentes quanto ela.

Se as senhoras em geral são pessoas respeitáveis, e realmente o são, mais respeitosa ainda é Dona Lucilia, pelo grande desprendimento com que tem vivido, pela história de mulher aguerrida, com as fibras enrijecidas pela luta social.

Para desmerecer o engajamento mais presente na fase jovem da vida e tentar caracterizar o esforço transformador como atos inconseqüentes e passageiros da mocidade, o conservadorismo cunhou a frase: "incendiário aos vinte, bombeiro aos quarenta".

Dona Lucilia, próxima agora aos cem anos de vida, mesmo em estado de debilidade física, é a negação veemente do referido adágio conservador, combinando de forma sadiamente atrevida, forte convicção revolucionária com idade avançada, tal qual Oscar Niemeyer, de quem, além de contemporânea, é companheira de convicções e de admiração à figura histórica de Prestes.

Lucilia, sem ser incendiária, no sentido pejorativo da palavra, mantém sim, em sua avançada idade, um ardoroso desejo de pôr fogo em muita coisa. Se pudesse, certamente colocaria sob as mais altas labaredas todo o sistema capitalista, o latifúndio, as iniqüidades de renda e de riqueza e os subprodutos maléficos deles derivados, motivada pela saudável indignação contra os abismos sociais que sempre vivenciou em todos os lugares onde esteve.

Negada a ela pelas difíceis condições econômicas, a chance de poder ter estudado mais, Lucilia ainda assim compreendeu, via militância e as duras lições concretas da vida, os conceitos de luta de classes, da mais-valia, da relação opressor x oprimido, da inconciliável e antagônica divisão entre os interesses do latifúndio e a Reforma Agrária, do conflito escandaloso entre a ostentação e a opulência, por um lado, e a miséria e a fome, de outro.

Aos profícuos 97 anos, encontra-se ligada há pelo menos vinte anos aos movimentos de luta pela terra, apoiando-os de todas as formas que pôde, seja abrigando lutadores sociais em sua própria casa, quando de seus deslocamentos, seja orientando, com sua vasta experiência de luta, os que a procuram para trocar ideias.

Permanece ela, com altivez de espírito, portadora da velha e saudosa paixão revolucionária que habitou a mente e o coração de lutadores valorosos da humanidade.


Lauro Guimarães é professor, fundador do PT em Uberaba e secretário de saúde em Ubá (MG).

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Jovem Lucilia (I)

Jornal da Manhã, Uberaba, 17/dez/2004
Livro Perfis especiais - feitos e méritos, 2009
João Eurípedes Sabino


No último dia 12/12/04, fiz uma visita que posso denominar inesquecível. Conheci Lucilia Soares Rosa, aliás, um desejo e uma dívida que tenho nutrido de longa data. Trata-se de um ser que, por sua lucidez e descortino mentais, desponta na frente de milhares da sua geração. São noventa e dois anos e quatro meses bem iniciados em 09/08/1912.

Contive-me várias vezes diante do turbilhão de informações claríssimas e detalhadas daquela que conviveu com Luiz Carlos Prestes, o grande Capitão. Orgulha-se em citar frases textuais de Karl Marx, Lênin, Prestes e outros destacados comunistas. Dizer-se uma revolucionária e de berço ateu é status que lhe toca o coração. Com o dedo indicador direito à fronte e olhar compenetrado, pausadamente, sem que eu o provocasse, acentuou palavras suas do tipo: - “O regime capitalista infunde medo até nos donos do próprio regime.” “Basta a paz entremear os seres, para sermos felizes”. “A História conta que tudo tende a desaparecer”. “Bush e outros líderes do mesmo estilo são doentes mentais.” “Dentro do sistema há que se ter um título, senão vira-se um João-Ninguém”. “O negro, por ter esta condição, deve demonstrar sua igualdade andando dentro dos trilhos.” “O sem-terra deve ter um comportamento irrepreensível”. “A religião é um engodo; o sistema exige que todos sejam enganados”.

A eloquência de Lucilia (ela parece conter em si uma jovem de 20 anos) não me permitiu anotar tudo. Acabei por ouvi-la... ouvi-la..., com a promessa de novos encontros. Vereadora em Campo Florido – gestão 1947 a 1951 – declara que só alcançou tal cargo devido à deposição de Getúlio Vargas – o “Bandidão”. “Ditadores tiraram um ditador, para voltar no dia 31 de março de 1964.” Sentenciou Lucilia. A eterna guerreira – ou memória política viva – rechaçou com ironia o que lhe disseram: - “Você é a reencarnação de Tiradentes”. Risos e... “Ora, só porque algo me fumega por dentro, sou a Tiradentes?”. Ah!!! Mais Risos.

Dois itens comentou demoradamente: 1) – Foi caseira de Anita Prestes, filha de Carlos Prestes. 2) – Tem um folheto a ela dedicado pelo grande Capitão, relíquia que não dá, não empresta e já está endereçada a um amigo, após a sua partida. Ali como modesto ouvinte, recebi mais uma página de sua memorável aula.

Quando lhe indaguei sobre políticos atuais, ouvi: - “Tudo está como antes; eles, os ideólogos, sabem dourar a pílula”, numa referência a Duda Mendonça. “Galinha esperta canta longe de onde botou o ovo”, referências ao marketing mentiroso. “Não vá atrás da cotovia que canta lindo. Ao se caçada, revela ser apenas um minúsculo passarinho”. Aí um ensinamento sobre o engano das aparências. “P... velha não acredita em amores”. Precisa de mais, leitor? Numa guinada rumo a fatos aqui ocorridos, a grande anfitriã lembrou com riqueza de detalhes o pistoleiro Aníbal Vieira (de Barretos ou Olímpia/SP), morto numa emboscada na Fazenda de Pedro Fidélis. O oficial, Capitão Altino, descarregou-lhe um fuzil 1908 quando dormia numa rede. Em um jornal – Gazeta de Uberaba – na Rua Artur Machado (calçadão) uma pessoa conhecidíssima matou um grande amigo, por ter errado o alvo.

Doca, o Orlando Ferreira, autor de “Terra Madrasta”, “O Pântano Sagrado” e outras obras, não saía de sua casa. Mostrou-se até o lugar onde aquele “inconveniente para o sistema de então” gostava de se sentar.

Pedi-lhe uma mensagem e ela foi enfática: - “Das pessoas devemos absorver as partes boas e criar uma coisa nova”.

Jovem Lucilia (II)

Jornal da Manhã, Uberaba, 24/dez/2004
Livro Perfis especiais - feitos e méritos, 2009
João Eurípedes Sabino

Então, continuando sobre a jovem Lucilia Soares Rosa, a quem abordei na última semana, a sensação que me ocorre é a de não parar quando tento descrevê-la. Permito-me aqui dizer que comprovei algo dito a mim, certa vez, sobre os seres irrequietos; eles não são “chegados” em colocar quadros nas paredes. A sala de Lucilia, na Avenida Alexandre Barbosa, nº 95, é despida de figuras ou adorações. Será por quê?

Ah, se tivéssemos mais algumas Lucilias por estes brasis! Em sua fala, está vivo o aconselhamento leninista: “Vamos botar fogo na fogueira e ter paciência revolucionária”. Quando vejo a letargia dos nossos governantes comparada ao pensamento de Lucilia (ela, apesar da idade, dispensa a ajuda de auxiliares), concluo comigo: Aquela mulher é superdimensionada para o seu tempo, e nós estamos deixando-a passar. É digna de um documentário.

Ao saber que a colega articulista Marta Zedinick de Casanova tem uma monografia extensa sobre Lucilia Soares Rosa – diga-se – sem o apoio oficial, reforça-me a tese de que as iniciativas de reconhecimento brotam naturalmente de um lado quando o verdadeiro merecimento está do outro.

É difícil falar de Lucilia, sem lembrar alguns dos seus feitos e posicionamentos. Por exemplo: ela sofre, mesmo à distância, ao ver o sofrimento de alguém conhecido ou não. Lembrou aí quanto padecem os pais dos jogadores Serginho e Júnior que tiveram mortes súbitas em campos de futebol. O fato de o motorista particular de Carlos Prestes não entender nadinha de política lhe causava, como revolucionária, profunda tristeza. A entrega de Olga Benário às forças alemãs não lhe sai do pensamento. Sempre refletiu e reflete ainda consigo: - “Por quê? Logo eu, uma mocinha do interior, ter as ideias que sempre tive e tenho? Sinto-me uma premiada”.

Fui ousado em perguntar-lhe sobre o porquê de existirem os sofridos andarilhos nas estradas. Respondeu-me: - “Tudo isso é fruto da acumulação de capital”. “Os traumas ocorrem pelo capital”. No fundo, lá... no fundo... Lucilia está certa; é só mergulharmos fundo na sua resposta.

Com a memória que substitui uma agenda, confidenciou-me: - “Esqueço-me literalmente de que não estou longe de partir, mas lembro-me sempre de que a vida continua”. Uma filósofa na concepção do termo.

Os filhos Moysés Soares Rosa e Calixto Rosa Neto, junto aos netos e bisnetos, compõem o dínamo que a impulsiona.

Lucilia não envelhece. Ela continuará sempre jovem.

João Eurípedes Sabino é engenheiro civil, presidente do Fórum Permanente dos Articulistas de Uberaba e Região e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro.