Revista Destaque In, Sacramento, mar/abr 2008
Lauro Guimarães
A trajetória de Lucilia Rosa é algo bastante raro em termos de coerência e forte ligação entre convicção e história de vida.
Teve contato com as idéias socialistas já na infância dos longínquos anos 20, em uma Uberaba controlada pela aristocracia rural, cidade então muito pequena e que respirava sob o clima pesado de religiosidade católica sufocante, preconceituoso e retrógrado.
Cresceu absorvendo o ateísmo do pai Calisto Rosa, precursor ativista social do princípio do século XX, militante inicialmente adepto do anarquismo, que ousava ser um assumido contestador das instituições reinantes, em pleno auge do coronelismo violento e castrador de qualquer insubordinação a seu completo domínio.
Tendo conseguido estudar muito pouco, Lucilia pôde, entretanto, conhecer os livros marxistas que maravilharam o alfaiate Calisto Rosa e o fizeram converter seu ideal transformador, do Anarquismo, para o Marxismo que se procurava implantar na Rússia, então recém saída da vitoriosa revolução de outubro, cujas notícias da tomada do poder por soldados e operários em armas, corriam mundo.
Mesmo integrando um número pequeno e insuficiente de idealistas, movidos pela generosidade e pela crença inabalável no socialismo, Lucilia logo se perfilou, em Uberaba e acolá, junto a companheiros que se dispunha, como ela, a remover gigantescos obstáculos em busca de uma nova sociedade, igualitária e fraterna.
Problemas e questionamentos existenciais pelos quais todos nós passamos, não foram capazes de abalar sua certeza inquebrantável no advento de novos tempos, para os quais cabia lutar.
Militante comunista desde muito jovem, combativa vereadora na pequenina cidade de Campo Florido em 1947, ao se bater pelos direitos dos despossuídos, confrontou ali também com a prepotência do poder dominante.
Empregada doméstica em casas de gente rica, a vida toda ganhando salários baixos, Lucilia teve que fazer um intenso sacrifício para conseguir educar e formar seus dois filhos.
Morou por vários anos na capital paulista, onde conviveu com o então secretário-geral do Partido Comunista do Brasil, (PCB naquela época) Luiz Carlos Prestes, conhecido no Brasil e no exterior, por décadas, como o legendário Cavaleiro da Esperança.
Tornou-se íntima das irmãs do dirigente comunista e, principalmente, de Anita Leocádia, filha de Prestes com Olga Benário, a alemã assassinada em 1942 pelas forças nazistas no campo de concentração de Bernburg.
Conseguiu detectar, com sabedoria, a nefasta influência das relações capitalistas de produção como grande causadora de conflitos pessoais, denunciando e alertando contra anseios e valores burgueses difundidos e martelados incessantemente nas cabeças dos seres humanos, seja através dos meios de comunicação ou de outros instrumentos de transmissão ideológica.
Nos perigosos anos 70, viveu na clandestinidade em São Paulo, escondendo sob disfarce a famosa filha de Prestes, intensamente procurada pela Polícia.
Por nada menos que seis décadas, enquanto o Partido estava a serviço da causa e suas ações se fundiam com os ideais revolucionários, a dedicação de Lucilia ao Partido foi sua primordial tarefa e preocupação, as quais todas as demais, sem exceção, estiveram subordinadas.
Ao longo de sua vida quase centenária não cultivou nenhum projeto pessoal de riqueza ou de conforto material que pudesse desviá-la da priorização da causa dos oprimidos.
Quando adveio a desilusão e discordância com os rumos e a linha do Partido, foi com tristeza que ela efetuou o inevitável afastamento daquele símbolo para o qual tanto lutou. No entanto deu prosseguimento firme à dedicação direta às mesmas causas de antes. Ao contrário de tantos que usaram os erros do Partido para renegar a luta e alguns até para passar a servir à direita, aqui também Lucilia foi extremamente digna.
Foi assim que, em 1980, manteve-se alinhada às novas posições políticas de Prestes, quando do rompimento entre o “Velho“, que havia retornado ao Brasil um ano antes, vindo do exílio, e o PCB moderado que emergia da clandestinidade.
Nos mesmos anos 80 participou ativamente Dona Lucilia da organização e das atividades do Centro de Integração da Mulher (CIM), entidade feminista atuante em Uberaba naqueles anos.
Com a auto-decretação do fim do seu antigo PCB, em 1992, quando a convidaram a aderir à nova agremiação partidária que surgia o Partido Popular Socialista (PPS) ela dizia de forma bem objetiva: "Esse 'Pepsi' não vai a lugar nenhum".
Continuou acreditando numa sociedade fundada na igualdade, e qual não foi sua alegria ao saber que na vizinha cidade de Campo Florido, onde sofreu violência policial e humilhações em virtude de seu espírito combativo, um enorme latifúndio havia sido ocupado em 1993 por dezenas de famílias sem-terra. Lucilia apoiou como pôde os ocupantes da área, auxiliando-os de todo modo e tornando-se também amiga de muitos deles, hoje assentados e gerando produção em uma terra antes abandonada.
Sempre se pautou por um notável despojamento, humildade pessoal e material, prestando integral solidariedade aos que lutam pelas causas sociais mais nobres.
Conquistou a amizade familiar e a gratidão eterna da família de Prestes, das irmãs do “Velho”, Eloísa, Clotilde, Lúcia e a mais nova, Lygia, por ter sido tão corajosa e devotada na tarefa partidária de proteger Anita em São Paulo, nos anos mais negros e arriscados da ditadura militar. Este cultivado carinho e admirações mútuas fizeram Dona Lucilia e a família do "Velho" trocarem cartas constantes.
Os revezes de toda ordem que a vida costuma trazer, sejam eles de caráter pessoal ou coletivo, como o foi o desabamento da União Soviética para Dona Lucilia, não a levaram a abdicar e, muito menos, renegar ou maldizer suas convicções e posições políticas.
Isso porque sempre foram posições tomadas com profundidade, radicais, porém não da tonalidade e conteúdo de um esquerdismo infantil.
Várias foram também as pessoas que a olharam, no decorrer deste bem extenso caminho, com o desprezo cultivado aos esconjurados “radicais“, ignorando que os atos e posicionamentos políticos de Lucilia se guiavam pela saudável radicalidade na acepção genuína do termo, daqueles que vão à raiz das questões.
As avaliações de todos que a conheceram ou conhecem, sempre estiveram marcadas por dois ângulos opostos de visão: baixinha destemida, brava mulher, altamente idealista, na ótica de seus companheiros e admiradores, ou; inversamente, apenas uma mulher geniosa, no entanto perigosa comunista, da qual se devia guardar distância, para os que abominam suas ideias.
Tão rica em tempo de existência e de luta, Lucilia, materialmente pobre, encarna de forma desafiadora, na velhice, a perene juventude daqueles lutadores sociais exemplares, que ininterruptamente travaram o bom combate, os imprescindíveis, nos dizeres famosos de Brecht.
Numa época em que divergir e contestar a ordem estabelecida era extremamente mais penoso do que hoje, Lucilia se atreveu a conduzir sua vida para longe do marasmo e da modorra própria das existências banais, daqueles que ficam o tempo todo, conforme a letra da música de Raul Seixas, "sentado no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar!".
Dotada de sagrada inquietude transformadora, não se permitiu ser tragada pelo egoísmo pessoal e familiar que emburrece, castra e aliena as pessoas, tornando-as reprodutoras inconscientes e apatetadas da dinâmica social e econômica que favorece o processo de acúmulo do capital para poucos e a submissão da maioria.
Rigorosa, consigo mesmo e com os outros, muitas vezes dogmática na forma e no método, poucos seres humanos, entretanto, ao longo de um percurso tão longo de vida, têm sido tão coerentes quanto ela.
Se as senhoras em geral são pessoas respeitáveis, e realmente o são, mais respeitosa ainda é Dona Lucilia, pelo grande desprendimento com que tem vivido, pela história de mulher aguerrida, com as fibras enrijecidas pela luta social.
Para desmerecer o engajamento mais presente na fase jovem da vida e tentar caracterizar o esforço transformador como atos inconseqüentes e passageiros da mocidade, o conservadorismo cunhou a frase: "incendiário aos vinte, bombeiro aos quarenta".
Dona Lucilia, próxima agora aos cem anos de vida, mesmo em estado de debilidade física, é a negação veemente do referido adágio conservador, combinando de forma sadiamente atrevida, forte convicção revolucionária com idade avançada, tal qual Oscar Niemeyer, de quem, além de contemporânea, é companheira de convicções e de admiração à figura histórica de Prestes.
Lucilia, sem ser incendiária, no sentido pejorativo da palavra, mantém sim, em sua avançada idade, um ardoroso desejo de pôr fogo em muita coisa. Se pudesse, certamente colocaria sob as mais altas labaredas todo o sistema capitalista, o latifúndio, as iniqüidades de renda e de riqueza e os subprodutos maléficos deles derivados, motivada pela saudável indignação contra os abismos sociais que sempre vivenciou em todos os lugares onde esteve.
Negada a ela pelas difíceis condições econômicas, a chance de poder ter estudado mais, Lucilia ainda assim compreendeu, via militância e as duras lições concretas da vida, os conceitos de luta de classes, da mais-valia, da relação opressor x oprimido, da inconciliável e antagônica divisão entre os interesses do latifúndio e a Reforma Agrária, do conflito escandaloso entre a ostentação e a opulência, por um lado, e a miséria e a fome, de outro.
Aos profícuos 97 anos, encontra-se ligada há pelo menos vinte anos aos movimentos de luta pela terra, apoiando-os de todas as formas que pôde, seja abrigando lutadores sociais em sua própria casa, quando de seus deslocamentos, seja orientando, com sua vasta experiência de luta, os que a procuram para trocar ideias.
Permanece ela, com altivez de espírito, portadora da velha e saudosa paixão revolucionária que habitou a mente e o coração de lutadores valorosos da humanidade.
Lauro Guimarães é professor, fundador do PT em Uberaba e secretário de saúde em Ubá (MG).